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Brasileiro nasceu para lavar louça e ponto final

Será? Crédito: Shutterstock

Já ouviram falar no Jorginho Pernambucano da Summerhill? Começou em um boteco no sertão nordestino. Foi descoberto por um caça-talentos e acabou sendo chamado para trabalhar em uma lanchonete na periferia de São Paulo. Em dois meses, recebeu proposta de um bistrô na zona sul. A rapidez com que limpava os pratos brancos de cerâmica parisiense chamava a atenção de todos. Certa vez, bateu o recorde de três mil louças em um só domingo. Pediu música na Ana Maria Braga. A partir de então, a carreira decolou. Recebeu sondagens de pelo menos cinco restaurantes europeus. Optou por um irlandês. Foi a contratação mais cara da história da culinária internacional. O jovem pobre de infância difícil decidiu usar parte do dinheiro acumulado para abrir uma escolinha de kitchen porter na cidade onde nasceu. “Quero ser exemplo para toda garotada do meu bairro”.

Pedrão da Parnell tem um estilo mais durão. Enquanto seu rival da Summerhill é reconhecido pela agilidade, ele tem fama de brucutu. Virou lenda entre os amantes de uma louça bem lavada. Os dedos calejados fazem o papel de esponja de aço. “Bombril é para os fracos”, repete a cada assadeira finalizada. Especializou-se em limpar panela queimada de porridge. Com ar de satisfação, tem o costume de bater no peito sempre que termina o serviço. Foi criado em uma comunidade pobre e orgulha-se por não ter virado bandido. “A cozinha salvou a minha vida”. Por isso, faz questão de visitar o Brasil nas férias só para inspirar a nova geração. Talentoso, vive a expectativa de ser convocado para trabalhar na Copa do Mundo. “Quero fazer parte do staff da área VIP”.

Cuba forma médicos. A Inglaterra, engenheiros. A Alemanha tornou-se uma fábrica de físicos. O Japão, de mecatrônicos. Na Coreia do Sul nascem centenas de projetistas por dia. Nos Estados Unidos brotam soldados de elite. No mercado de trabalho globalizado, cada país tem o seu papel. E o do Brasil é fornecer kitchen porter para o mundo. Dizem que o número de assistentes de cozinha exportados para a Europa já supera o de jogadores de futebol. Brasileiro nasceu para lavar louça e ponto final. Por quê? Nem Darwin explica.

Me dei conta disso logo na minha primeira entrevista de emprego na cidade. Havia dezenas de candidatos. Pelo menos uns cinquenta. Sentei ao lado de oito concorrentes. Em determinado momento, nos pediram para que colocássemos os passaportes em cima da mesa. Seis eram azuis. Os outros dois grenás. “Ufa, ao menos não somos todos do mesmo país”, pensei. Uma hora depois, os “europeus” estavam conversando em português. A posição de kitchen porter é tão glamourizada que nem mesmo os brasileiros com dupla cidadania resistem à ela. Agrega valor.

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No meu atual emprego, três das quatro pessoas que trabalham na cozinha têm a mesma nacionalidade. A gerente australiana já fala em “máfia verde-amarela”. De tanto conviver conosco, ela deve achar que não sabemos fazer outra coisa. No imaginário gringo, a economia brasileira é movida à bucha e detergente. “Funcionamos como uma grande lavanderia de pratos. Outros países mandam milhares de containers cheios de louças sujas. Lavamos e mandamos de volta em três dias úteis. No início, cobrávamos por quilo. Hoje o preço é em toneladas”. Ela acreditou.

Se eu fosse estrangeiro, também acreditaria. Imagine o que eles devem pensar quando param para ler os centenas de currículos de brasileiros que são distribuídos em Dublin por dia. Todos os candidatos têm vasta experiência como kitchen porter. Assim como eu. No início eu era honesto. Mas depois de ser preterido durante meses, resolvi “incrementar” meu CV. De acordo com aquele pedaço de papel, eu sou formado em jornalismo, mas nunca exerci a profissão. Lavo prato desde os quinze anos de idade e já passei por hotéis cinco estrelas, restaurantes e até botecos. Meus amigos não sabem, mas coloquei seus nomes e telefones como referência. O André é dono do Fasano e o Ricardo administra o Porcão em sociedade com o Renato Gaúcho.

Assim como uma criança idolatra o Neymar, me inspiro no Jorginho Pernambucano da Summerhill. Na útima terça-feira, o vi no camarote da Dicey’s. Tentei chegar lá para tirar uma foto, mas acabei barrado pelos seguranças. Mandei algumas mensagens via twitter, mas ele nunca me responde. Quem sabe um dia… Até lá, sigo minha luta diária para ganhar destaque neste mercado tão competitivo. Assim como Oscar Schimdt ficava em quadra após o treinamento para melhorar a performance em lances livres, permaneço na cozinha depois do expediente só para aprimorar a agilidade com a bucha na mão. Em casa, suplico aos flatmates para deixarem a louça por minha conta. Tem briga toda vez que eles boicotam a minha homework. Nas folgas, faço trabalho voluntário lavando pratos em navios de carga. Quando estou entediado, vou no kebab perto de casa e peço para limpar a chapa suja. De graça! Afinal, todo esforço é válido. Anotem o meu nome. Vocês ainda ouvirão falar no Leandrinho Paulista da Dorset Street.

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Leandro Mota

Jornalista desde 2005. Trabalhou por oito anos na Rádio CBN. Fanático por futebol, cobriu duas Olimpíadas (2008 e 2012), uma Copa do Mundo (2010) e outros eventos esportivos. Em 2009, ganhou o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos por uma série de reportagens sobre preconceito e xenofobia na Europa. Certo dia, bebeu demais e acordou em Dublin. Ainda não descobriu como voltar para o Brasil.

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