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Tempo e luz em dezembro

Por Viviane Miranda

Crédito: Shutterstock

Nunca, nunquinha mesmo, havia percorrido o caminho para o trabalho de manhã no escuro, no breu, testemunhando o cinza grafite do céu se transformar em cinza claro para deixar os primeiros matizes de azul surgir. Tímido, como quem se apresenta para uma plateia antes da estreia, e vai tomando força, pegando o ritmo, exalando vontade.

E são 8h. Não são 5h da manhã na fazenda, no interior, na casinha de sapê no alto da montanha. São quase 8h30 na capital, na urbanidade, na cidade movimentada, onde tempo é dinheiro e 24h deveriam ser 30 para muita gente – ou 29, segundo Veríssimo. E só agora o Sol acorda, preguiçoso, displicente. Minha avó, que sempre levantou com o cantar do galo às 5h, ficaria perplexa. Pior que eu de manhã tentando quebrar o fluxo de mim mesma, interromper uma noite às vezes mal dormida e que finalmente chegara ao REM durante a madrugada, sonhos que não serão lembrados nem concretizados ou pesadelos inesquecíveis. Implorando para mais 5 minutos, 4 minutos, 2 minutos, 1 minuto. Até que passam-se 30 e você incorpora o Bolt, ou o Vanderlei para ficar mais com a nossa cara, para não chegar atrasado, para não ser notado, julgado, marcado como quem não controla o próprio ritmo, o próprio corpo, o próprio tempo – quer coisa pior que ser um fracasso em gestão do tempo?

O ‘todo dia ela me sacode às seis horas da manhã e me sorri um sorriso pontual’ do Chico não é para mim, nunca foi, embora eu a cantarolasse nas rodas de samba, desejando que fosse. Meu marido nunca cantaria essa música, por mais que eu, sortuda, possa. Pois quando meu corpo não reage à única missão do despertador, tenho ele pra fazer o papel de pai, mãe, chefe ou assistente pessoal, me empurrando para fora da cama e me puxando para a vida, insistindo para eu me despedir do transe, do coma e dos pés nas nuvens. E nesse frio de inverno em Dublin, quando a cortina fechada é melhor que aberta, quando o medo do escuro é também do desconhecido e a vontade de sair deixa de ser vontade, quando o quente fake do quarto se contrasta com o frio da sala desamparada, a única coisa que a gente quer é se recolher na insignificância de nós mesmos, permanecer no aconchego do duvet, envolta pelo pijama de fleece, meia fluffy da Penneys e abraço.

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E soma-se à isso a covardia de não querer enfrentar o contraste das estações dentro de casa. Afinal, a gente sente. Parece volta ao mundo em 50m², ou eu deveria dizer malditos 23° de rotação da Terra? Aposto que Brian Cox teria uma explicação convincente. Tem que fechar portas, janelas, portas, cortinas, portas – O TEMPO TODO – para que a temperatura não suba, não caia, não nos estremeça, não nos faça duvidar. E aí a gente não se sente em casa, porque casa da gente, de brasileiro, de mineiro, é toda aberta, escancarada, pés no chão, pernas de fora, sol na cara. E saber que lá, no meu outro mundo, o tempo de dezembro faz suar, amolecer, derreter os miolos, a paciência e o gelo da caipirinha… O tempo que deixa a cerveja quente e o volante do carro pelando, queima a pele e faz marquinhas. O tempo mano velho, que traz churrasco e piscina, que reúne os amigos no fim de semana, refresca a alma e ainda avisa que é hora de começarmos os preparativos para o carnaval. Enquanto lá já se pensa em fevereiro de 2017, aqui se vive dezembro, com toda a sua pompa, circunstância, vermelho, verde, prata e dourado, expectativa de neve e de St. Stephen’s Day, vento gelado no rosto, Mariah Carey e Frank Sinatra, Christmas Jumper e brilho no olhar, nas ruas, nas casas.

Mas hoje, hoje foi diferente. Porque vi o despertar do mundo de perto. E me fiz presente nele. E não estava tão frio. Um presente controverso de fim de ano, Deus dizendo: está escuro e ventando, mas fazem 12°, sem chuva. Agradeça – praticamente verão nessa época cuja expectativa é sempre pelos 0° e intermináveis drizzles, showers, pingos d’agua. E quando a gente vê claridade com breu, luz com darkness, dez tons de verde das folhas dizendo bom dia, crianças bocejando, jornais trazendo fatos e dados do que se foi e sol e lua juntinhos, de mãos dadas, te vendo andar, a gente sabe que é o mundo te abraçando, sussurrando ao pé do ouvido: agora o dia está pronto, vem vivê-lo, vem. E ele fala baixinho porque cada um tem um tempo de acordar.

Sobre a autora:
Mineira de Uberaba e BH, jornalista, amante do tempo, de cinema, de um bom bombom de licor com cereja e chocolate, do seu Irish husband e – como dizem uns e outros – do mundo. Já morou em Buenos Aires e Cork e agora está aprendendo a decifrar, experimentar e a se encontrar em Dublin.

Revisado por Tarcísio Junior
Imagens via Shutterstock
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